Poema | Cantata à Morte de Inês de Castro

 

POEMA

 

CANTATA À MORTE DE INÊS DE CASTRO


Longe do caro Esposo Inês formosa
Na margem do Mondego
As amorosas faces aljofrava
De mavioso pranto.
Os melindrosos, cândidos penhores
Do tálamo furtivo,
Os filhinhos gentis, imagem dela,
No regaço da mãe serenos gozam
O sono da inocência.
Coro subtil de alígeros Favónios
Que os ares embrandece,
Ora enlevado afaga
Com as plumas azuis o par mimoso,
Ora solto, inquieto,
Em leda travessura, em doce brinco,
Pela amante saudosa,
Pelos ternos meninos se reparte,
E com ténue murmúrio vai prender-se
Das áureas tranças nos anéis brilhantes.
Primavera louçã, quadra macia
Da ternura e das flores,
Que à bela Natureza o seio esmaltas,
Que no prazer de Amor ao mundo apuras
O prazer da existência,
Tu de Inês lacrimosa
As mágoas não distrais com teus encantos.
Debalde o rouxinol, cantor de amores,
Nos versos naturais os sons varia;
O límpido Mondego em vão serpeia
Co’um benigno sussurro, entre boninas
De lustroso matiz, almo perfume;
Em vão se doira o Sol de luz mais viva,
Os céus de mais pureza em vão se adornam
Por divertir-te, ó Castro;
Objectos de alegria Amor enjoam,
Se Amor é desgraçado.
A meiga voz dos Zéfiros, do rio,
Não te convida o sono:
Só de já fatigada
Na luta de amargosos pensamentos
Cerras, mísera, os olhos;
Mas não há para ti, para os amantes
Sono plácido e mudo;
Não dorme a fantasia, Amor não dorme:
Ou gratas ilusões, ou negros sonhos
Assomando na ideia, espertam, rompem
O silêncio da Morte.
Ah!, que fausta visão de Inês se apossa!
Que cena, que espectáculo assombroso
A paixão lhe afigura aos olhos d’alma!
Em marmóreo salão de altas colunas,
A sólio majestoso e rutilante
Junto ao régio amador se crê subida;
Graças de neve a púrpura lhe envolve,
Pende augusto dossel do tecto de oiro,
Rico diadema de radioso esmalte
Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;
Nos luzentes degraus do trono excelso
Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
A lisonja sagaz lhe adoça os lábios;
O monstro da política se aterra
E, se Inês perseguia, Inês adora.
Ela escuta os extremos,
Os vivas populares; vê o amante
Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;
O prazer a transporta, amor a encanta;
Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio
Magnânima confere;
Rainha esquece o que sofreu vassala:
De sublimes acções orna a grandeza,
Felicita os mortais; do ceptro é digna,
Impera em corações… Mas, Céus! Que estrondo
O sonho encantador lhe desvanece!
Inês sobressaltada
Desperta, e de repente aos olhos turvos
Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
Ministros do Furor, três vis algozes,
De buídos punhais a dextra armada,
Contra a bela infeliz, bramando, avançam.
Ela grita, ela treme, ela descora;
Os frutos da ternura ao seio aperta,
Invocando a piedade, os Céus, o amante;
Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto,
À suave atracção da formosura,
Vós, brutos assassinos,
No peito lhe enterrais os ímpios ferros.
Cai nas sombras da morte
A vítima de Amor lavada em sangue;
As rosas, os jasmins da face amena
Para sempre desbotam;
Dos olhos se lhe some o doce lume;
E no fatal momento
Balbucia, arquejando: «Esposo! Esposo!»

Os tristes inocentes
À triste mãe se abraçam,
E soltam de agonia inútil choro.
Ao suspiro exalado,
Final suspiro da formosa extinta,
Os amores acodem.
Mostra a prole de Inês, e tua, ó Vénus,
Igual consternação e igual beleza:
Uns dos outros os cândidos meninos
Só nas asas diferem
(Que jazem pelo campo em mil pedaços
Carcases de marfim, virotes de oiro).
Súbito voam dois do coro alado:
Este, raivoso, a demandar vingança
No tribunal de Jove;
Aquele a conduzir o infausto anúncio
Ao descuidado amante.
Nas cem tubas da Fama o grão desastre
Irá pelo Universo.
Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres;
No torrado sertão da Líbia fera,
As serpes, os leões hão-de chorar-te.
Do Mondego, que atónito recua,
Do sentido Mondego as alvas filhas
Em tropel doloroso
Das urnas de cristal eis vêm surgindo;
Eis, atentas no horror do caso infando,
Terríveis maldições dos lábios vibram
Aos monstros infernais, que vão fugindo,
Já c’roam de cipreste a malfadada,
E, arrepelando as nítidas madeixas,
Lhe urdem saudosas, lúgubres endeixas.
Tu, Eco, as decoraste,
E, cortadas dos ais, assim ressoam
Nos côncavos penedos, que magoam:

«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores;
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.

«Mísero esposo,
Desata o pranto,
Que o teu encanto
Já não é teu.

«Sua alma pura
Nos Céus se encerra;
Triste da Terra,
Porque a perdeu.

«Contra a cruenta
Raiva íerina,
Face divina
Não lhe valeu.

«Tem roto o seio
Tesoiro oculto,
Bárbaro insulto
Se lhe atreveu.

«De dor e espanto
No carro de oiro
O Númen loiro
Desfaleceu.

«Aves sinistras
Aqui piaram
Lobos uivaram,
O chão tremeu.

«Toldam-se os ares,
Murcham-se as flores:
Morrei, Amores,
Que Inês morreu.»

FIM DA CANTATA


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BOCAGE – ANTOLOGIA POÉTICA – (não sabemos se neste livro está incluído o poema da Cantata à Morte de Inês de Castro, trata-se de uma sugestão)

de Bocage; Ilustração: André da Loba.
edição: Faktoria K de Livros, dezembro de 2010 ‧ isbn: 9789898205544

 

SINOPSE

Plano Nacional de Leitura.

Treze poemas em cada livro, treze poemas como treze luas, como os treze poemas do calendário lunar. A lua, esse ser cambiante que muda a sua face de espelho circular. Senhora das marés, astro da fecundidade. Ritmos lunares para dar medida ao tempo, ao tempo poético.

Este livro convida-o a ler um poema por dia, ou por semana, ou mês lunar. Depois, pode deixá-lo a repousar numa estante, aberto na ilustração que quiser, que é, nem mais nem menos, a leitura que André da Loba fez das palavras do poeta, para deleite dos nossos olhos e do nosso olhar mais pessoal.

 

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