CONTO
O POSSÍVEL É O FUTURO DO IMPOSSÍVEL
É tão bom ter a melhor ideia da vida. Mesmo que se tenha três ou quatro vezes por semana a melhor ideia da vida, é tão bom de cada vez que acontece. Ao encontrar-se um novo sentido, é o mundo todo que renasce. Uma boa ideia carrega em si o tamanho do mundo, uma espécie de felicidade incandescente.
A explosão de um fósforo: a ideia inicia-se num ponto. Existe um mistério essencial nesse instante que separa o nada de qualquer coisa. O nada é transparente, pode ser atravessado por gestos e preenchido. A ideia é qualquer coisa e, por isso, fascina, cativa a atenção, como as lareiras das manhãs de inverno. A ideia ateia-se, expande-se através do sentido. Uma ideia pode incendiar o mundo inteiro. Os exemplos são tantos, é desnecessário enumerá-los. As ideias são fogo, fazem corar as faces. Quando se tenta contar uma ideia, luta-se com os limites das palavras. Nesse momento, a esperança é que o outro se possa inclinar nas janelas dos nossos olhos e, descobrindo-se no alto de uma torre, possa ver tudo o que contêm, horizonte, distância.
Então, pode muito bem acontecer que o outro fique a olhar com o rosto impassível, anestesiado, pálpebras semidescaídas, até ao momento em que, perante o silêncio e a obrigação de se pronunciar, diz: não, acho que não vai correr bem. Nesse momento, há algo que nos é roubado. Perdemos as chaves de casa, estamos, de repente, numa cidade estrangeira, deixamos de saber quem somos. Nesse momento, há uma reação térmica, fogo versus gelo, e há um desapontamento sem direção. Não sabemos se estamos dececionados com o outro por não ter conseguido compreender o alcance da ideia que tentámos descrever, ou se estamos dececionados connosco próprios por não termos sido capazes de descrevê-la, ou se estamos dececionados com a ideia por não ser à prova de descrença. É como se perdêssemos para sempre algo insubstituível, um par de botões de punho que passaram de geração em geração.
Este é o momento de dizer a esses pessimistas disfarçados de prudentes, de racionais ou de razoáveis, que não. Dizemos não ao não deles. Quando nunca se tentou contradizê-los, parece difícil. As primeiras tentativas de resposta, magoadas, escorregam nas paredes da sua intransigência. Mas a prática demonstra que é incrivelmente fácil resistir-lhes, basta deixar que a sua descrença nos atravesse, basta transformá-la em silêncio, subtrair com uma seringa invisível todo o sentido à sua descrença, basta não acreditar nela. A sua deceção total e permanente para com o mundo não nos arrastará.
Além disso, o impossível deles, aquilo a que chamam “impossível” é a matéria a que aspiramos. Temos fome desse impossível e é nele que exercemos a nossa ação. Antes de serem possíveis, os telefones, os aviões ou os telecomandos eram impossíveis. Como é que alguém pode acreditar que duas pessoas sejam capazes de falar e ouvir-se a milhares de quilómetros de distância? Como é que alguém pode acreditar que máquinas a pesarem toneladas levantem voo carregadas de pessoas e atravessem oceanos? Como é que alguém pode acreditar que se possa apontar uma pequena caixa de plástico para um retângulo e, carregando em pequenos botões, se mude imagens em movimento na superfície desse retângulo, escolhendo entre dezenas de alternativas, que chegam por cabos enterrados no chão?
O impossível de antes sempre foi possível, apenas não tinha acontecido que alguém tivesse sido capaz de chegar até ele. Faltava a quantidade de pessoas que acreditaram, que perseguiram o filão até o demonstrarem e construírem. O mesmo acontece com o impossível de agora. O impossível de agora não deve ser muito diferente do impossível de antes. Por sua vez, o impossível mesmo impossível existia num e continua a existir no outro, mas como não pode ser distinguido do impossível que será possível no futuro, a hipótese mais criadora, aquela que propõe mais esperança é a que considera que tudo o que formos capazes de imaginar poderá ser materializado. Ou seja, todo o impossível poderá vir a ser possível. Assim, não há nenhum motivo para fazer cara de peido e dizer: não, acho que não vai correr bem. Em primeiro lugar, porque a imaginação expande o mundo, ou expande aquilo que somos capazes de ver nele, o que é a mesma coisa. Em segundo lugar porque é muito provável que o “correr mal” deles seja o nosso “correr bem”.
José Luís Peixoto para a Revista Visão.
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AUTOBIOGRAFIA
de José Luís Peixoto.
edição: Quetzal Editores, julho de 2019 ‧ isbn: 9789897224591
SINOPSE
Na Lisboa de finais dos anos noventa, um jovem escritor em crise vê o seu caminho cruzar-se com o de um grande escritor. Dessa relação, nasce uma história que mescla realidade e ficção, um jogo de espelhos que coloca em evidência alguns dos desafios maiores da literatura.
A ousadia de transformar José Saramago em personagem e de chamar Autobiografia a um romance é apenas o começo de uma surpreendente proposta narrativa que, a partir de certo ponto, não se imagina como poderá terminar. José Luís Peixoto explora novos temas e cenários e, ao mesmo tempo, aprofunda obsessões, numa obra marcante, uma referência futura.
Críticas
«Nenhum leitor que se aproxime desta Autobiografia entrará no livro desprevenido. Saberá, para isso existem os meios de comunicação, que um jovem escritor chamado José, talvez o próprio autor quando começava, se encontra com um autor maduro e consagrado, esse sim com nome e sobrenome, José Saramago. Entre ambos, o que não existe fora do livro e o que existiu na vida real e literária, surge uma história de encontros e desencontros numa atmosfera que às vezes lembra, em outro tempo e circunstância, a que José Saramago criou para contar a vida de Ricardo Reis e Fernando Pessoa durante o ano em que ambos morreram. A história de Peixoto, ao contrário da de José Saramago, não é sobre morte, conta uma vida que começa com brios e desejos. O escritor consagrado é a referência, o futuro desejado, que provoca admiração e um incontrolável repúdio: em todas as circunstâncias da vida os mestres são a medida das coisas, o estímulo que precisa de ser combatido para que o aprendiz não fique cerceado. Este livro é a agónica luta do escritor jovem com amores e perdas, aventuras diversas aqui e ali, personagens que vêm de outros mundos, vozes diáfanas e vozes misteriosas, todas elas no compasso do ritmo próprio e já consagrado de José Luís Peixoto.»
Pilar del Rio, sobre Autobiografia.